Ainda sobre a despatologização da transexualidade:

Estava lendo no Blog Trans Homem Brasil esta matéria do post abaixo sobre a despatologização da transexualidade. Concordo em muito com este belissimo texto.
Eu pessoalmente sempre fui de posição contrária à despatologização, por não sabermos ao certo no que tal atitude acarretaria. E pelo risco de interromper, ceifar os sonhos de milhares de homens e mulheres transexuais. E isso não seria justo, seria desconstruir uma pequena vitória, conquistada à duras penas.

Quando assisti à uma matéria sobre a liberação da cirurgia nos hospitais universitários à nivel experimental, nos meados de 1997, não cabia em mim de tanta emoção. O sonho inalcançável parecia mais possível, palpável, real. Ainda levei dois anos para conseguir ingressar no ProTIG (Programa de Transtorno de Identidade de Gênero), no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, tamanha a desinformação sobre o assunto.

Ligava para todos os possíveis hospitais (inclusive o HC) e diziam nem saber que existia essa cirirgia no Brasil. Tentei entrar em contato com jornais, revistas, a emissora da reportagem, e nada!
Mas não desistia, passavam-se tres ou quatro meses e tentava novamente. Quem sabe implantavam esse atendimento por aqui? Até que em 1999, ao ligar mais uma vez para o HC, tive a sorte de ser (bem) atendida por uma telefonista que sabia do ProTIG, e encaminhou minha chamada para o setor responsável, onde tive todas as informações necessárias e iniciei meu tratamento.

Foram dois anos e meio de acompanhamento por uma equipe multidisciplinar, em consultas individuais e em grupo. Passei por psicóloga, psiquiatra, fonoaudióloga, assistente social, ginecologista e urologista. Mas em nenhum momento fui tratada como doente, ou como vítima. O tratamento era igual e respeitoso. Na verdade eu nem conhecia o termo TRANSEXUAL, pois naquele tempo não era discutido e nem conhecido esse tema e essa questão. Ao chegar na primeira consulta, me identificava com uma travesti, mas com uma cabeça de mulher. Desejando "mudar de sexo" e assim adequar minha genitália à minha cabeça e minha alma.

E depois que me identifiquei e me reconheci enquanto transexual, descobri que de doente nem eu e (quase) nenhuma outra dos grupos tinha nada. Que a dita "doença" está somente no CID10, para servir de argumento para a cirurgia ser custeada pelo SUS. Só isso!
E sem termos a certeza de que retirando esse código (é só isso, um código) não prejudicaremos o tratamento e o acesso à ele de milhares de homens e mulheres transexuais de todo o Brasil.
E olha que tem apenas cinco ou seis estados com grupos e equipes formadas no pais.

Lembro com angústia e preocupação, de que seis meses antes de minha cirurgia, o SUS,MESMO SENDO CONSIDERADA COMO DOENÇA a transexualidade (transexualismo no CID10), negava-se à custear a cirurgia. E o pior, tinhamos de articular uma luta meio "na moita", interna para a retomada das cirurgias, pois se procurássemos mídias chegaria à opinião pública. E sabíamos que a repercusão seria negativa. E o resultado também.
Já imaginávamos a revolta de alguns preconceituosos e donos da verdade, argumentando que no Brasil, morre tanta gente por ano, à espera de algum procedimento cirúrgio de urgencia, então porque fazer mudanças de sexo, se isso seria uma "escolha" pessoal, não um problema de saúde?

Tivemos de procurar alguns políticos, a então Des. Maria Berenice Dias e algumas pessoas influentes, incluindo a direção do HC. Tudo sem levantar poeira e fazer alarde.
Ficou uma única alternativa, emergencial, utilizar o fundo de pesquisa destinado ao HC para custear temporareamente as cirurigias, para evitar que ficassem muitas em atraso e evitasse ou diminuísse o pânico e desânimo comum à tod@s transexuais que faziam parte dos grupos atendidos na época (eram quatro grupos, tendo uma reunião por semana com cada um. Cada grupo tinha uma reunião no mês).

Se a Transexualidade sendo entendida como doença, o SUS por vezes tenta abster-se de sua responsabilidade, imagino se a despatologização acontece de fato. Os argumentos para a negativa do Sistema Único de SAÚDE em custear o Processo transexualizador seria fundamentado em ser agora esta uma cirurgia "estética", uma vez não tratar-se mais de um problema de saúde, um transtorno de disforia de gênero. Tem de ser tudo muito bem pensado, articulado e alinhavado, inclusive com representantes do Ministério da Saúde, para depois não ter a necessidade de termos um grupo de trans de "copinho na mão" nas portas do SUS.

E depois de ter realizado a readequação, novamente um entrave com o custeador (SUS) levou à formação de um Grupo de Trabalho para a inclusão definitiva para a inclusão da Cirurgia de transgenitalização e do processo transexualizador na tabela do SUS, no Ministério da saúde em Brasília, do qual tive o privilégio de ser uma das titulares. Pois dalí saiu um compromisso com o então Secretário do Ministro, Gomes Temporão (que pouco tempo depois tornou-se Ministro da saúde) de reforçar um olhar sensivel à questão e tornar viável e definitivo essa inclusão. E assim aconteceu pouco tempo depois.

Então poderia sim ser um Tiro No Pé essa luta pela Despatologização da Transexualidade, apenas para gritarmos ao mundo que não somos doentes. Mas e a Transexualidade, não é então um problema de saúde pública? Estará o SUS desobrigado de custear o Processo Transexualizador? Quem pagará essa conta? As pobres trans, que por vezes não tem condições de pagar nem o implante mamário de próteses de silicone? Os homens trans, que necessitam de diversas cirurgias? As ONGs que "conquistaram" a retirada do sufixo "ismo" da transexualidade? Quem?

Todos sabemos que não somos doentes, que a Transexualidade não é doença. Que algumas doenças podem sim, surgirem causadas por tamanho sofrimento e desconforto com a realidade de ter um corpo com o qual não se identifica, e a "cura" ou o modo de amenizar estes malefícios é somente a redequação. Aqui não somente a sexual, mas a de gênero, passando por hormônios, depilação a laser para as trans, colocação de próteses, ginecomastia para os FTMs, e a social, iniciando com a retificação do registro civil e demais documentos civis. Um tratamento por completo. Seria melhor do que a despatologização por despatologizar! Pois seria uma luta que traria frutos certos, teria um alvo certo e resultados igualmente.

E lutar pela despatologização da Travestilidade, que isso sim é um absurdo. E a retirada das travestis do CID10 não traria a elas nenhuma perda. E nessa luta, estaríamos de mãos dadas com nossas amigas travestis. Há muitos anos atrás, em um Encontro regional (RS, SC e PR) de Travestis e Transexuais, muito discutiu-se sobre esta questão, e ficou acordado de pleitear-se a retirada das travestis do Código Internacional de Doenças (CID) e deixar-se, por hora as transexuais, uma vez que não sabia-se o resultado dessa retirada. E conversei muito sobre o assunto com a divina Keila Simpsom.
Tenho estado afastada do Movimento LGBT, mas não sabia da retomada dessa discussão, mas creio que ainda vai longe...

3 comentários:

  1. a despatologização poderia sim trazer todos esses maleficios que vc se refere se nao fosse bem estruturada. todavia, tiria o sofrimento de termos que nos enquadrar num padrão estabelecido pelos responsáveis pela nossa adequação, poderia nos aliviar de um processo exaustivo, desgastante, desmotivador que somos obrigadas a "aturar" se quisermos nosso objetivo realizado um dia.... ass: le.

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  2. Oi! gostaria de saber (se você ainda lembrar) qual o centro ou numero do HC para procurar. Consegui um encaminhamento de um médico e levei no posto de saúde do meu bairro, que fez a solicitação de consulta para o HC. Mas isso já faz mais de um mês e ninguém ligou ainda marcando a consulta. Procuro o posto e eles me dizem que tenho que esperar o contato do HC. O que devo fazer? Procurar o HC ou esperar? Obrigado pela atenção!

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